segunda-feira, 15 de junho de 2009

O coiso e a coisa


Pouco depois do PREC (Processo Revolucionário em Curso),  ainda ecoavam os plenários promovidos pelas  comissões de trabalhadores e as “mobilizações de massas” para desfiles nas avenidas, com epílogo em grandes comícios nas alamedas, largos, praças e campos de futebol, espaços solidários requeridos e aproveitados para berrantes e garridos  "manifestódromos", onde ressoavam  eloquentes discursos, críticos ou laudatórios, dos organizadores, dirigentes  sindicais e políticos, cujo povo entusiasmado, alegre, crente e esperançoso, ouvia e apoiava “despejando” “palavras de ordem” com chavões reivindicatórios e libertários, populistas e quase anarquistas, importados e adotados das revoluções latino-americanas, agora também já aqui permitidos graças ao 25 de abril, quando um jornal da Capital, o saudoso vespertino “Diário de Lisboa”, pegou num documento datado de 1953 que atualizava a postura nº  69 035 da CM de Lisboa, inserindo uma tabela de coimas atinente a combater o que era tido como comportamento sexual obsceno e indecoroso com ofensas graves à moral pública, e  mostrou-o nas páginas do seu diário.

  


O êxito foi tal que não havia pessoa que desprezasse uma cópia para mostrar em casa e aos amigos a comprovar o que eram os tempos e a repressão salazarista nos muitos anos que precederam a “Revolução dos Cravos”. Também, confesso, recortei, mostrei e guardei o pedaço bem guardado; tão bem que tive grande trabalho para o encontrar. Mas lá estava, junto a uns cartões velhos e velhos recortes de outros jornais, já desbotados e amarelecidos pelo tempo e pela fraca qualidade da tinta e do papel, pelo que, sem embargo de postar aqui igual recorte, apenas como simples curiosidade e testemunho, transcrevo-o, na íntegra, para que possa ler-se sem dificuldade:

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“CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA

Postura nº 69 035/ – Policiamento de Logradouros Públicos e zonas Florestais


Verificando-se o aumento de atos atentatórios à moral e aos bons costumes, que dia a dia se vêm verificando nos logradouros públicos e jardins, e, em especial, nas zonas florestais Montes Claros, Parque Silva Porto, Mata da Trafaria, Jardim Botânico, Tapada da Ajuda e outros, determina-se à Polícia e Guardas Florestais uma permanente vigilância sobre as pessoas que procurem frondosas vegetações para a prática de atos que atentem contra a moral e os bons costumes. Assim, e em aditamento àquela Postura nº 69.035, estabelece-se e determina-se que o artigo 48 tenha o cumprimento seguinte:

1º – Mão na mão ………………………………………………………………... 2$50
2º – Mão naquilo ………………………………………………………………. 15$00
3º – Aquilo na mão ……………………………………………………………. 30$00
4º – Aquilo naquilo ……………………………………………………………. 50$00
5º – Aquilo atrás daquilo ……………………………………………………. 100$00
§ Único – Com a língua naquilo …………………………………………….. 150$00

de multa, preso e fotografado

Lisboa, 9 de janeiro de 1953”
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Palpita-me que foram atarefados confrades ou zelosa fina flor de ratazanas de sacristia quem escreveu o texto, porquanto, um simples "mangas de alpaca", e ainda menos qualquer técnico ou dirigente da CM de Lisboa ou de outra CM, não repetiria a palavra “verificando” em tão curto espaço. Aliás, embora não se conheça a Postura em referência, um aditamento ou regulamento complementar, como é o caso, só poderia ser aprovado e publicado pela CM de Lisboa por coação das altas esferas, porque se fosse inteiramente da sua autoria não o poderia tornar extensível a uma mata da “Outra Banda” (Trafaria), que além de pertencer a concelho diferente (Almada), é também de outro Distrito (Setúbal)  se, como penso, se referem à mata de S. João da Caparica, entre a Cova do Vapor, Trafaria e Costa da Caparica. Se isso não fosse suficiente para ilustrar e justificar a minha asserção, bastava atentar-se nos termos utilizados no incrível quão ridículo normativo:

Quem fosse apanhado só lhe restava pagar. E ai de quem se atrevesse a pôr a boca no trombone ou, pior ainda, a pôr o trombone na boca – pagava e ia desterrado para o Tarrafal.


“Mão na mão” …

Seria que os namorados de então não poderiam dar-se as mãos ou andar de mãos dadas?  Podiam com certeza! E até, sem coimas, abraçar, apalpar, beijar, boca na boca, língua dentro, língua fora, rápida ou longamente por tudo quanto era sítio. É claro que havia, sempre houve, os falsos moralistas, que, talvez despeitados por já não poderem ou terem menos sorte, em tudo viam artes diabólicas e o inferno à espera desses perdidos pecadores logo ali ao virar da esquina. Já Camões dizia: “…que famintos beijos na floresta (…) que afagos tão suaves (…) melhor é experimentá-los que julgá-los; mas julgue-os quem não pode experimentá-los”.

Parece que todo o tempo do autor ou autores destas normas seria preenchido a ver passar navios ou pelas igrejas e capelinhas a acender velas e a pôr flores aos santos, a bajular e a influenciar candidatos a possidónios políticos, aspirantes a Salazares, que entretidos como andavam (também eles) em assegurar capital influenciável para alcançarem os seus objetivos,  nada percebiam da vivência comum, real, do namoro são do povo, às claras, porque às escondidas todos tinham as suas libidinosas forças, e a história é rica em relatos de acontecimentos envergonhados e  escabrosos, passados intramuros, com recatados e puritanos  indivíduos de ambos os sexos, que, pujantes da natural lascívia na hora da verdade, como a todos em geral, não havia dever, pudor nem vergonha que lhes valesse!...

Arrebatados pela sublime e intensa natureza do prazer e desejo da  posse, comum a cada exemplar de todas as espécies, as crenças, os valores éticos ou morais,  o jugo de qualquer ordem pagã ou religiosa, eram como agora o são de imediato esquecidos e relegados para plano inferior onde, ridicularizados, ficavam totalmente à margem, postergados em paciente, penosa e triste  espera, apenas recompensados com  um lugar na primeira fila daquele salutar e inebriante teatro do amor, do amar, apreciando com espanto não isento de despeito, o supino espetáculo de apelativos e ciciantes gritinhos de deleite, os roncos sensuais e aveludados da satisfação ardente, o arfar característico do respirar voluptuoso dos amantes e suportando com estoicismo e resignação o cheiro a suor emanado do brutal e vivificante ato carnal,  entretendo-se, como granjeio, além do lugar privilegiado, ao ridículo acariciar das vestes mais íntimas, despidas de repelão e espalhadas por aí, a esmo, até que os seus detentores se saciassem, e exauridos e nus delas enfim se lembrassem.

Então a vida destas elevadas criaturas voltava à virtuosa, imaculada e respeitável normalidade. Depois de um fundo respirar, e já refeitas do anelante ofegar durante o gozo extasiante, talvez persignando-se em contrição mas com juras de voltar para  repetir ainda com mais vigor, recuperavam  as nobres faculdades e consciências e estavam de novo prontas para enfrentar as suas santas realidades, o chamamento, logo tornando, estuantes de fé, ao piedoso caminho, aos altos deveres, aos sagrados desígnios que consistiam na imposição de normas e castigos para quem não cumprisse ou atraiçoasse as suas supremas e inatacáveis convicções.


Era o salazarismo, o Estado Novo com todo o seu potencial autoritário e corporativista, coberto pelo dossel cerejeirista, pela doutrina social, moralista e repressora, onde tudo era subversivo caso não lhe fosse subserviente: “Quem não é por nós é contra nós”, e nada mais existe para além dos sagrados valores “Deus, Pátria e Família” – “A Bem da Nação” …

“Aquilo e naquilo”

Partindo do princípio de que aquilo seja o instrumento sexual do homem, órgão penetrador, e naquilo o seu correspondente sexual da mulher, órgão recetor, não se compreende muito bem a diferença do valor da coima entre mão naquilo e aquilo na mão, pelo que se afigura haver discriminação na penalização ao ato da mulher (apanhada com aquilo na mão – 30$), por igual atrevimento do homem (apanhado com a mão naquilo – 15$), donde se infere o conceito que então imperava de que a mulher, sendo mulher, deveria ser mais comedida que o homem ou pagava a dobrar… 

Metade ou a dobrar, haveria maior crime que castigar a fêmea por tomar o pulso e avaliar o seu senhor e vassalo – seu amor, consolo e seu regalo - quando, na verdade, por justiça, deveria ser condecorada? E igual galardão não mereceria o macho por afagar com respeitável e calculada cobiça aquelas lindas coxas apelativas e humedecidas e dedilhar a aveludada mata da rósea vulva, sentindo as convulsões ansiosas, inseguras e frementes de desejo?

Por favor, deixem as pessoas gozar o céu na terra porque o outro, que é suposto estar para além do azul do firmamento, tão abstrato quão irreal, esse, como dizia alguém meu conhecido, pode esperar… – e quanto mais tempo melhor, digo eu!...

Tratamento lastimavelmente pejorativo para os responsáveis pela procriação e pelo maior prazer que qualquer ser vivo pode experienciar e praticar com a maior assiduidade possível. Deveriam ser mais cuidadosos e respeitadores de órgãos tão importantes e distintos. Aquilo… aquilo dito assim é um pronome demonstrativo que não mostra coisa alguma; é algo referido com desprezo, insubstancial, sem valor, dando a impressão que não é comum a quem escreveu a insólita relação das coimas a aplicar… e daí!...

E daí… se calhar foram anjos que produziram tal aborto!... Sim, porque, a fazer fé no que sói dizer-se, os anjos não têm sexo, não têm coiso nem coisa, pelo menos palpável, substantiva, e assim podem dispor de total liberdade para desvalorar a fofa e o falo. O falo que na Antiguidade – mal sabem eles, anjos e demónios – era grande vedeta nas festas, as falofórias em honra de Baco, levado por sacerdotes até ao deus da fertilidade em reconhecimento pelo cabal desempenho na função que lhe fora cometida, donde as orgias e bacanais de todas as literaturas.

“Aquilo naquilo”

Bem poderiam deixar-se de eufemismos baratos e dizer simplesmente ato sexual, cópula ou coito nas vertentes anal, oral ou clássica; hoje, com calculado e provocador desassombro, diríamos queca.

“Aquilo atrás daquilo”

Confesso que não entendi esta expressão logo à primeira, mas depois, vendo bem, se “aquilo” é o coiso e “naquilo” a coisa, então o que significa “daquilo”? (de aquilo). Só pode ser do coiso, portanto “aquilo” atrás do coiso (“daquilo”) de um homossexual! Donde a pergunta: a que propósito o autor não penalizava daquilo com aquilo atrás? Seria que…?

Dura lex sede lex… para todos ou não há moralidade …

Constantino Braz Figueiredo



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