segunda-feira, 25 de maio de 2009

Memórias de Infância

 

Lembranças de garoto de aldeia 

Não trato aqui de contar a minha vida em Cebola, minha terra, meu orgulho. E tento desviar-me o mais que me permitem estes desajeitados relatos do recurso a repreensíveis lamechices, embora, de todo, não estarei livre de, aqui e ali, inadvertidamente, cair nessa pecha.  Apenas recordo  emoções, traduzidas de lembranças inapagáveis, e é meu desejo, com o melhor que sei e  posso,  enquadrá-las com a História, amparo deste pequeno contributo na presunção de que assim, situando as coisas,  melhor se compreenderá como era a existência na  nossa terra, naquele pequenino universo, cotejada com  o que se passava no mundo que a influenciava; como decorriam os dias nessa longínqua época, os meus e os de muitos, ou de quase todos, nascidos durante e entre guerras, na alternância de períodos de razoáveis alegrias e satisfações e de algumas tristezas e muitas carências.  

No diz tu, digo eu, em alegres e inócuas brincadeiras e bem sacrificadas atividades, caldeados  nas forjas do companheirismo, da amizade e entreajuda, fomos adquirindo o traquejo, a moral, o comportamento, que pela vida fora tanto nos haveriam de valer e orgulhar, e lá fomos crescendo e assim chegámos ao trabalho, a adultos, à tropa, e assomámos ao mundo que nos acolheu naturalmente, porque para isso já estávamos preparados por adequado e bem esforçado tirocínio.

Entretanto...

Os adultos mais esclarecidos ou para aí voltados, liam o jornal ou ouviam quem o lia ou iam para o estabelecimento do “Pedoa”, à Cruz da Rua, que, na loja de vinhos e outros artigos, tinha a única telefonia pública. Ali se juntavam  para ouvir o noticiário da uma, sempre à espera de uma notícia que tivesse acabado com a maldita guerra e o abominável Hitler, e os relatos de futebol aos domingos pelas quinze. Era o tempo da subjetiva, ostentosa e aberrativa quão descabida alcunha dos violinos, que só tocariam música para entreter português porquanto a Espanha, a Inglaterra, a Áustria, a Argentina, apenas com castanholas, bifanas, valsas e tangos, brindavam-nos  com oito, nove ou dez e depois até já se recusavam a fazer jogos, mesmo particulares, com grupos portugueses incluindo a seleção.

Havia mais duas telefonias, os rádios, como se dizia, uma a dos Batistas, à Eira, que generosamente, bem alto para o povo ouvir, nos deliciava com música e programas da Emissora Nacional, dirigidos pelos locutores Pedro Moutinho, Igrejas Caeiro e Jorge Alves, depois Alfredo Raposo, Artur Agostinho e outros. O Fernando Pessa era mais para documentários cinematográficos. Colocavam no ar música sinfónica, marchas, ranchos, fados e canções ligeiras, o Alberto Ribeiro, a Amália, Luís Piçarra, Hermínia Silva, Francisco José…. Outra telefonia era do meu padrinho,  que esporadicamente também facultava para se ouvir o relato de jogos mais importantes…. Havia, portanto, três rádios que pareciam caixotes como as primeiras televisões de 66cm a preto e branco. Poderia haver mais algum, não o nego, mas dele não havia sinais.

 

Viviam-se então em Cebola creio que os melhores dias de sempre. Havia dinheiro, bastante dinheiro e fartura de alimentos. As escolas abarrotavam. As instituições concelhias e estaduais não previram nem conseguiram acompanhar a capacidade e génio reprodutivo dos homens e mulheres do kilo e saltipilha. De modo que, a breve trecho, eram apenas duas salas e duas professoras para mais de centena e meia de alunos, as sacrificadas D. Maria José Ventura (rapazes) e D. Alice Clotilde Almeida (meninas). Não sei qual o motivo, mas a proporção era de dois rapazes para uma rapariga, em campos separados, não fosse haver por ali algum mexerico infantil! Mesmo no Inverno rigoroso, dentro da escola não se dava pelo frio. Pudera, com cem crianças a respirar em sala fechada!…

 

De repente…

 

Mil novecentos e quarenta e cinco, seis de agosto, bomba atómica sobre Hiroxima, três dias depois, dia nove, outra bomba é lançada sobre Nagasaki. Resultado: cento e oitenta mil civis morreram, muitos milhares de feridos e estropiados, mais de duzentos mil ficaram direta e psicologicamente a sofrer de doenças para o resto das suas vidas, e as gerações seguintes, indiretamente, de outras enfermidades causadas pela contaminação dos produtos dos solos e subsolos (águas e colheitas hortícolas), sobretudo as crianças e pessoas de saúde mais frágil. Aparte as razões, de justificação grosseira, embora  laboratorialmente fabricada, prevalece o senso comum de que foi um ato gratuito, de má-fé, porquanto a guerra já tinha acabado e não foram procurados alvos militares, mas objetivamente cidades, centros de cidades – quanto mais ao centro melhor - porque quantas mais mortes, maior seria o êxito da operação.

O mortífero sucesso foi logo difundido por todas as comunicações possíveis, sobretudo as militares do agressor, para que aterrorizasse todo o mundo e rapidamente se visse, se soubesse e ficasse bem vincado quem era bom, quem era o melhor e quem mandava; tal como o previsto, colheu, pois o objetivo primeiro era impressionar as potências beligerantes; tal como o quis e julgou, serviu os seus interesses imediatos e futuros nos domínios político-económico e militar.

Foi o ás de trunfo para jogar forte na partilha e dissimulada protetoria dos territórios conquistados e, acima de tudo, o primeiro ato político para a liderança e influência futura nas nações de todo o Globo. Com o sacrifício daqueles infelizes  e propaganda a condizer, começara ali a Guerra Fria – as lutas pelas terríficas armas atómicas e nucleares e pelas tecnologias espaciais, enfim, a luta pelos domínios do poder, do prestígio e das influências.

 

Já com quase oito anos, lembro-me de, ao coberto (onde a rua bifurca para a Costa e para os Cabecinhos), ouvir o meu pai, que todos os dias lia o “Século”, dizer para a sua tertúlia – os suspeitos do costume: “Pronto! Aconteceu o pior… lançaram a primeira bomba atómica.  Arranjaram-na bonita. A guerra acabou, mas daqui em diante outras guerras virão e bem piores que esta. Cada um vai sempre querer mais e melhores armas destruidoras que o vizinho. Só o respeito e principalmente o medo que tiverem uns pelos outros os poderá parar”.  E tinha razão. Lá longe, tocavam já tambores para novos conflitos - a Coreia, o Vietname, Cuba…  e por aí fora.

 

A partir daí, Cebola, “um cantinho do céu”, como lá soía dizer-se, começou imediatamente a ter carências de toda a ordem, o dinheiro nada valia pois não havia o que comprar. Os mais pobres ou de famílias mais numerosas, passaram então das boas… De pouco valia algum pecúlio proveniente do ainda quente “kilo”. O pão, o leite, a farinha, outros artigos de primeira necessidade, eram racionados e adquiridos com senhas que eram distribuídas consoante o agregado familiar. Lembro-me de quando, logo às cinco da manhã, com essas senhas, ir tomar lugar numa bicha para a padaria da Eira, onde era fornecido apenas um quarto de um “trigo” de um quilo (quilo?!) por dia e por pessoa… até se acabar. Os outros iam à fornada da tarde se por acaso houvesse fornada…

 

Enquanto isso, dizia-se que Salazar velava e Cerejeira rezava para que não tivéssemos guerra, embora o povo morresse à míngua. Não sei, nem percebia muito do que se passava, mas a Salazar era atribuída uma frase política bem reveladora: “Livro-vos da guerra, mas pelo sacrifício da fome”. E Cerejeira, também nesse tempo, agradando ao seu amigo, compunha: “Abençoada a fome que faz o povo humilde”.


Peço desculpa por invocar alguns nomes que cito com todo o respeito e com a disposição de que se os próprios ou os familiares com isso sentirem algum desconforto os retirarei imediatamente.

 

Constantino Braz Figueiredo

 

 



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